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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O paradoxo (anti)político de Marina Silva

 Marina Silva quer ser a opção política que está fora da política; quer convencer o eleitor a votar em uma plataforma que não poderá ser julgada no futuro.

João Feres Júnior e Fábio Kerche (*)
Valter Campanato/ABr
A repetição nas coisas humanas já foi tema das reflexões de importantes filósofos e escritores. Os historiadores antigos a tinham como certa, Maquiavel a viu como provável e Marx, como farsa. A política eleitoral da democracia representativa contemporânea, da qual nenhum desses autores tratou, não está livre dela, tampouco. Como que constrangidos por um número limitado de scripts, seus personagens reapresentam o que já foi visto e vivido em outros tempos, às vezes, por outras gerações.

Esse parece ser o caso da recém-escolhida candidata do PSB à presidência da república, Marina Silva.

O mantra entoado por ela, já sabemos todos há bastante tempo, é o da negação da política institucional em nome de convicções e ideais supostamente éticos. Não é a primeira persona política na nossa vida recente a tomar esse caminho. Mas, como ensinaram os antigos mestres dos quais falamos, o que é aparentemente ético pode ser politicamente catastrófico.

Seguindo essa estratégia, Marina Silva declarou recentemente: "Nosso compromisso é pelo fim da reeleição. O meu mandato será um mandato de apenas quatro anos". Pois bem, o fim da reeleição é uma bandeira que fala diretamente aos adeptos da antipolítica, tão numerosos nos dias que correm.

Ela sintetiza vários chavões que vemos repetidos frequentemente por aí nas vozes de cidadãos comuns, de diferentes classes e ocupações.

O primeiro deles é a imagem do político como um predador rapace, somente interessado em dar continuidade, senão aumentar, o lucro que aufere por meio de corrupção.

O segundo é o do partido que pretende se eternizar no poder, garantindo assim o fluxo de cargos públicos e de dividendos da corrupção política para seus apaniguados. Segundo o terceiro, a vontade de se reeleger induz o político no cargo a utilizar a máquina pública para fins eleitorais. Seria, portanto, profundamente ético acabar com a reeleição, pois estaríamos assim debelando essas mazelas.

Raciocínio melhor podemos conceber, mas talvez não um que seja mais distorcido na compreensão do funcionamento da democracia eleitoral, particularmente no que afeta seu caráter democrático propriamente dito. Vejamos. Para começar, vamos descartar a posição segundo a qual todos os políticos são igualmente ladrões cujo objetivo é saquear os cofres públicos e enriquecer de todas as maneiras que se lhes apresentam. Se isso fosse verdade, a democracia não seria mais que um total embuste, coisa que nem mesmo Marina argumenta.

Assim, somos obrigados a aceitar que existe uma diversidade de opções oferecida pela classe dos políticos. Como em várias atividades, existem os que roubam, uns que roubam mais do que os outros, aqueles que roubam bem pouco e, provavelmente, aqueles que não roubam. Mas roubar está longe de ser a atividade mais importante desempenhada por um político; há sua plataforma política, ideias, projetos, valores, etc. Aqui também há diversidade: aqueles mais preocupados com o social, outros com o mercado, empresários e investidores, alguns mais estatizantes, outros mais liberais, e assim vai. Pois bem, em suma, só vale a pena falar de eleição se a escolha (palavra sinônima) faz algum sentido.

Então, qual seria o efeito da reeleição naquilo que toca a escolha?
 
 Trabalhos acadêmicos sobre o assunto mostram que esse efeito é de fato positivo, ainda que isso seja pouco intuitivo, pois ele diz respeito mais ao comportamento do candidato/eleito do que do eleitor. Para o eleitor a eleição se resume, em grande medida, ao ato da escolha entre diferentes propostas e personalidades, escolha essa baseada na avaliação da atuação pregressa do político ou em suas promessas.

Mas um político que busca a reeleição deve se comportar de maneira bem diferente daquele que não a tem em seu horizonte. Ora, é o projeto de reeleição, acima de tudo, que força o político a manter com seus eleitores um diálogo, isto é, ser responsivo, pois se ele fizer o contrário do que prometeu, agir à revelia das vontades daqueles que lhe deram o mandato, a reeleição lhe será negada no próximo pleito. Dado que nossa democracia é representativa e que outros mecanismos de controle do eleitorado sobre os políticos eleitos são muitas vezes informais, indiretos e frouxos, a reeleição é um instrumento fundamental. Ela funciona de maneira virtuosa tanto para cargos do legislativo, como deputado, como do executivo.

Não é somente da reeleição que Marina quer se distanciar e, portanto, da obrigação do diálogo e da prestação de contas. Ela também já prometeu que se distanciará do partido pelo qual é candidata: o PSB. Na mesma declaração, que também reforça o senso comum de que partidos são um aglomerado de interesses ilegítimos, ela afirma que o presidente da República "não deve ser tratado como propriedade de um partido", para justificar a promessa de que sua Rede Sustentabilidade vai se desvincular do PSB assim que puder se institucionalizar.

Assim, a campanha vai ser feita pelo PSB - em aliança com a organização Rede - que logo depois será descartado caso a candidata seja eleita. Mas se o contrato com o eleitorado é feito na eleição, e a plataforma da candidata é um híbrido entre PSB e Rede, então o rompimento com o PSB será, no futuro, um rompimento também com essa plataforma? Aqui começamos a ver mais claramente o paradoxo encerrado em seu posicionamento. Ela está imbuída de uma missão, mas essa missão não pode ser aquela definida explicitamente pela plataforma na qual está concorrendo, pois essa é partilhada pelo PSB.

Há duas explicações possíveis para esse aparente paradoxo.

 A primeira é levar a sério a plataforma mista PSB-Rede, ou seja, que sua candidatura será uma solução de compromisso entre os dois partidos. Mas se isso é verdade, o que ela acabou de prometer é um tipo de anúncio de estelionato eleitoral futuro. A chapa do PSB pode ganhar a presidência, mas quem leva é ela, e depois de sua anunciada saída do partido hospedeiro, não haverá mais garantia alguma de que ele vá continuar no poder.

A segunda explicação possível é que Marina está claramente anunciando, para os bons entendedores, a natureza instrumental do PSB. Essa interpretação é ainda mais perturbadora, pois ao escancarar o fato de tomar o PSB como legenda de aluguel ela cai em outra contradição: a de propor a redenção da política por meio de uma prática política das mais deploráveis: a corrupção de todo um partido.

A rejeição da reeleição, não somente como projeto pessoal ou partidário, mas em relação ao seu princípio, feita por Marina, atenta contra o caráter democrático de nosso sistema.

Ademais, ela deseduca a população, pois reverbera percepções da política que são mistificadoras senão francamente mentirosas. Ao mesmo tempo que incentiva e lucra com a percepção de que a política é eminentemente podre e corrupta, Marina quer se apresentar frente ao eleitorado como uma opção política prenhe de sentido. Ela quer ser a opção política que está fora da política; ela quer convencer o eleitor a votar em uma plataforma que não poderá ser julgada pelas urnas no futuro, já que nem ela e nem o PSB (que deve ser descartado) serão avaliados pelo seu legado em uma próxima campanha.

Ao refletir sobre os crimes e atrocidades cometidos pelos Estados Unidos na conquista do Texas e dos territórios do Sudoeste, abiscoitados em guerra contra o México, o filósofo e teólogo Ralph Waldo Emerson disse que essas eram questões seculares, de menor importância frente à missão divina que Deus tinha reservado àquele país: seu Destino Manifesto. A narrativa que Marina constrói para si se aproxima muito desse tipo de raciocínio. Paradoxos e contradições são obstáculos para a razão, enquanto no discurso religioso eles são constantemente enunciados e alimentados, pois funcionam como instrumento de sedução daqueles que querem crer.
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* JOÃO FERES JUNIOR é cientista político, professor do IESP/UERJ e da UNIRIO e coordenador do Manchetômetro, website de acompanhamento da cobertura midiática das eleições 2014 do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP) do IESP/UERJ.

FÁBIO KERCHE é mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Foi Visiting Scholar na Universidade de Nova Iorque e professor de Ciência Política em faculdades de São Paulo e na Universidade de Brasília.

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