Poucos têm sido, no mundo moderno, os regimes sociais que não se identificam como democráticos. Entre eles, como modelos, o nazismo e o fascismo não só dispensaram a hipocrisia de se identificarem como democráticos como consideraram a democracia um sistema apodrecido. Os novos e superiores homens que pretendiam construir - com eugenia social e moral - seriam viris, atléticos, cultos, honrados, semideuses. As mulheres, reflexos das valquírias, belas, esposas virtuosas, mães devotadas. Quando o nazismo desmoronou, de suas ruínas vieram as provas de que as coisas não eram exatamente como proclamavam ser. Os líderes não passavam de um bando de criminosos insanos, em que havia de tudo, menos virtuosos deuses olímpicos.
Registradas essas exceções, todos os regimes se dizem democráticos. Os governos militares em nosso continente – e não só no Brasil – surgiram sob o pretexto de que estavam defendendo a democracia. No Chile, nessa inversão da linguagem, Pinochet assassinou o regime republicano, que respeitava os partidos e realizava eleições regulares e livres. Acompanhei, em Santiago, as eleições de março de 1973, vencidas por grande maioria por Allende, apesar das dificuldades decorrentes do locaute capitalista, isso seis meses antes do golpe. Não há um só país da América Latina que não tenha sofrido governos ditatoriais, e nenhum deles, nem mesmo o dos Somoza, na Nicarágua, o de Trujillo, na República Dominicana, o dos gorillas da Argentina, e de seus vizinhos, no Uruguai, se disseram antidemocráticos.
Antidemocráticos, em seu idioma, eram os povos, que lutavam contra o desemprego, a fome, a ignorância, a doença, a humilhação e a morte.
A democracia não é um sistema acabado de organização política da sociedade. É um processo que se desenvolve, com seus momentos de avanço e de recuo, em busca da igualdade de direitos de todos os seres humanos. De todos os direitos – do conhecimento, do trabalho criativo, da vida saudável, da expressão intelectual e artística, da alegria, do amor, da dignidade – enfim, da vida plena. Sendo assim, a democracia é uma forma de convívio que só poderia ser construída onde houvesse liberdade de ação política. Só será completa no espaço político em que todos os homens disponham da mesma oportunidade de educação, dos mesmos serviços de saúde, da mesma possibilidade de trabalho e de formação de sua família.
O capitalismo sempre existiu, a partir do momento – valha o truísmo conhecido – em que surgiram a propriedade privada e as sobras de produção familiar. Temos sociedades capitalistas mais primitivas e mais avançadas. Os defensores do capitalismo o associam ao direito de propriedade e de livre iniciativa. Mas poderemos considerar perfeita uma sociedade capitalista – e democrática - em que a livre iniciativa é tolhida pelos cartéis e monopólios, montados e conduzidos pelo sistema financeiro que existe acima e além dos Estados nacionais?
Os Estados nacionais são a organização possível das sociedades políticas. Eles se legitimam na missão essencial e em sua identidade ontológica: existem para servir aos homens e à sua sobrevivência como espécie. Sendo assim, os Estados serão tanto mais perfeitos quanto mais democráticos venham a ser, se a democracia, como a queriam os pensadores antigos, significar a plena isonomia entre os seres humanos, e sua participação igualitária nas decisões da comunidade política.
A liberdade, portanto, está subordinada às condições objetivas para o seu exercício. Mais uma vez, valha o truísmo: quem tem fome não é livre; quem não domina os instrumentos básicos do saber não é livre; quem é obrigado a vender sua força de trabalho a outro homem tampouco é livre. Na visão de Hannah Arendt, todo assalariado é um escravo em tempo parcial.
Ora, em uma situação como essa – e é a que nos toca viver – o capitalismo de Estado não pode ser uma maldição e o oposto da democracia. Se o socialismo real tem se frustrado no mundo, e o capitalismo financeiro é isso que estamos vendo, a solução ideal talvez viesse a ser uma sociedade econômica em que os grandes setores estratégicos de produção e de serviços, sobretudo os que dependem de recursos naturais (que devem ser de propriedade comum, de todo o povo) fossem administrados pelo Estado, em nome da sociedade nacional – e os outros fossem deixados à iniciativa privada.
As minas, as águas, os recursos energéticos e sua exploração, as telecomunicações, as ferrovias, os transportes aéreos, a emissão da moeda, as operações bancárias, os seguros, além dos serviços de saúde, da educação e do absolutamente necessário monopólio da violência, a fim de assegurar a segurança dos cidadãos e da comunidade, deveriam ser do Estado. A agricultura e a pecuária (garantido o acesso familiar à terra), a indústria de transformação, os serviços de turismo e de entretenimento, o comércio em geral talvez funcionassem melhor no regime da livre concorrência.
Enfim, capitalismo de Estado e democracia não são situações antagônicas. Mas não há democracia real – e isso estamos vendo hoje – onde um por cento da população vive no fausto, enquanto o restante mal sobrevive, algumas poucas famílias do mundo dominam os bancos, e, mediante eles, os Estados e os recursos naturais do planeta.